quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A Viúva Ester

A viúva Ester é extremamente meticulosa - arruma os garfos nas gavetas, fala sozinha muito lenta de mãos postas, olhando de soslaio a janela do quarto. A viúva Ester é mulher antiga, rata de erva a quem bateram com uma cana e enxotaram para a cave. A viuvez, sabem os senhores, é, além de um estado oficial, uma posição na vida, a maior das solidões quando não se amou. Ester odiara os amantes que logo após a morte do marido abandonara. A letra de Ester era viúva antes deste acontecimento que enlutou ambas as famílias.
Digamos: a letra, a caligrafia das pessoas está morta quando não se ama. Escreve-se mal, não se cortam os tês, etc. Mas antes de continuar, advirto os senhores de que nunca estudei grafologia, nem conheci a viúva Ester, nem sei nada acerca da viuvez, da morte, nem sequer do amor. Faço perguntas, sondo, alinho palavras umas a seguir às outras, em suma - sou gratuito.
Gratuito, sim. Escrever é uma coisa fulgurante, seja a falar do que for. A viúva Ester vivia na infância, cultivava rosas, regava o seu sexo onde havia grande profusão delas, e, no entanto, nunca lhe ocorreu montar um negócio de flores. Seria bastante rendoso, disseram-lhe um dia - e evitaria assim estar apenas sujeita à reforma deixada pelo marido, que agora fora reduzida a metade. As leis, resmungava assiduamente a viúva Ester, só servem para isto: tirar dinheiro a quem precisa. Posto que prosseguia com o mesmo tradicional cuidado de arrumar os garfos nas gavetas forradas de papel claro. Certo dia ouviu dizer: “Os gatos pretos dão azar”. Meditou noites e noites neste aforismo popular sem conseguir encontrar-lhe um sentido. Estava quase a desistir quando adormeceu e sonhou dois dias a fio. Viu no sonho um gato preto a sair de uma casa alta que tinha no topo um homem de casaco brilhante e laço de longas pontas caídas. Este homem olhava-a fixamente e de cinco em cinco gritava-lhe (apesar de gritada sua voz encerrava alguma doçura): “Dá-me as rosas que guarda debaixo da saia!” O gato após sair da casa alta pela porta toda chapeada e de atmosera medieval, ficou parado a escrutar o homem enquanto lambia uma roseira desmedida que surgira havia pouco transportada por outro homem (este, negro e mais espadaúdo que o anterior).
“Ester! Ester!” - era uma águia de vidro em luzes esmaltadas e tão cruas, que não pôde sustentar as pupilas por mais de trinta segundos. Entretanto, o gato devorou a rosa e sentiu-se a terra tremer e no chão abriram-se frestas donde emergiam profetas a recitar o Apocalipse. Correu para outra praça e olhou o relógio na torre da igreja. Viu monges e frades e bispos a montarem cavalos selvagens. Os cavalos pulavam desesperadamente, davam coices e mais coices, mas nenhum dos cavaleiros caía. Ester estranhou bastante, como aliás estranhara o que vira anteriormente, mas não se importou e passou adiante.
Agora o gato desaparecera e acordou com a cama desfeita cheia de palavras escritas nos lençóis interiores. Pensou no que sonhara. Não encontrava explicação: os fatos eram desconexos e se nenhuma relação tinham entre si, menos ainda teriam com a incipiente frase que ouvira: “Os gatos pretos dão azar”. Apesar disso, congeminou, não perdi tudo — a desconexão não existe naquilo que sonhei como também no que vivo, no meu dia a dia. E riu-se.
Ester aprendera rapidamente que tão estrangeiro é o sonho como a realidade, e que ambas estas coisas eram igualmente concretas por isso mesmo. Então, modificou toda a sua estrutura habitual de agir. Quem sou eu, a viúva Ester? Que é a viuvez? Quem foram os meus amantes e o falecido marido? Amei? Não amei? Teria odiado? Perguntas às quais respondia de maneiras diversas sabendo de antemão que qualquer que fosse a resposta dada, esta estaria certa. E passava assim o tempo falando para o microfone de um gravador.
Depois, premia o botão, a fita enrolava-se na outra bobina, premia outro botão, e estirava-se a ouvir as frases inventadas, rindo-se com algumas que repetia deliciada. Mandou pregar as janelas por dentro com tábuas de madeira velha, comprou candelabros, mobilou a sala com armários antiquíssimos onde ia amontoando folhas de papel muito branco e bobinas frescas que todos os dias mandava vir dum estabelecimento da rua. Uma manhã ao acordar (Ester não sabia se era manhã) proferiu: Eu, a viúva Ester, morri ontem às quatro horas. Dito o que ligou o gravador para não perder uma palavra do que se seguisse: Eu, a viúva Ester, estou cansada. Não falo com ninguém, mas chegaram até mim vozes de vizinhos que dizem entre si que estou louca. É verdade que fui feliz ao descobrir que não importa encontrar relações exactas entre as coisas - ser irresponsável é muito agradável, e sem o peso da responsabilidade vive-se melhor - mas o facto é que não é bem assim: o reconhecimento disto custou-me a vida, visto que estou defunta desde ontem às quatro horas. Há um equívoco. Não morri, o que é a mesma coisa. Não sei se me estão a entender. Concordo que não é fácil: eu própria já estou a suar de falar tanto, mas é preciso, é justo explicar-lhes que não sei quem sou, nem sei nada apesar de todas as respostas às minhas perguntas estarem certíssimas. Não percebem?

Uma escolha

Às vezes as escolhas transformam-se em vontades, em sonhos por que se vale a pena lutar...Mas no inicio não passavam de meras decisões.
Que estranho!
Apenas, só e somente uma escolha que mudou a tua vida amanhã...